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Chefe Pimenteiro

 

Por Daniel Dieb, Iago Garcia, João Paulo Manfrin, Theo Chacon, Vinícius Custódio e Vinicius Rodrigues

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Pimenta no c... dos outros é refresco”, já diria um dito popular brasileiro... Para José Lima, no entanto, no prato dos outros é uma delícia. O homem moreno, atarracado e já quinquagenário diz que come pimenta desde a infância. Trabalhando na cozinha há 33 anos, entre idas e vindas a Barro Velho, em Pernambuco, onde cresceu e deixou família, seu Zé, como prefere ser chamado, não fez curso de gastronomia e nem mesmo completou o ensino médio – todo seu conhecimento vem da experiência.

 

 

Experimentar e diferenciar pimentas. Trabalho de poucos. E para poucos. Em São Paulo não há cursos dirigidos para a especialização na ‘pimentaria’, que poderia ser interpretada como a arte de produzir conservas dos mais diversos tipos, tamanhos e cores; com pimentas mais adocicadas, outras mais picantes; em recipientes longos, redondos, achatados. É como em um laboratório: combinar os elementos, as especiarias, em busca de produtos diversos. A arte do fazer.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

E em seu proceder José Lima não falha. Morando em São Paulo há cerca de três décadas, mesmo tempo que começou a trabalhar com cozinha, o pernambucano sai de casa, no bairro da Casa Verde, todos os dias pela manhã e chega ao Tordesilhas, restaurante que já teve diversos endereços e hoje fica em uma das alamedas do Jardins, a Tietê. O expediente é puxado, de quase dez horas, e o produto a ser manipulado é um só: a pimenta. Cumari do Pará, Malagueta, Pimenta Bode, Dedo de Moça, Murupie, Olho de Peixe, Scott Bone... Essas são algumas das atrizes do show de Zé Lima, e a montagem do cenário fica por sua conta.

 

 

“Trabalhar com pimenta é difícil sabe, não é uma tarefa que todo mundo quer. Mas eu não escolhi, fui escolhido. A pimenta é uma tradição pra mim desde os tempos da minha mãe, lá no sertão de Pernambuco, que sempre apimentava todos os pratos. A gente comia muito peixe, farinha e feijão. Sempre com pimenta. É um tipo de tempero que suporta condições ruins de tempo, se é que me entende... Lá naquela secura lá, dava pimenta que era uma beleza! E como nem sempre tinha opção de comida, a pimenta tava presente na maior parte das refeições”, conta o senhor de sotaque arrastado e voz baixa.

 

 

Entre sussurros e olhares atravessados, seu Zé parece bem à vontade no ambiente requintado do restaurante Tordesilhas. Há 22 anos a vida fez com que os caminhos de Zé Lima, então assistente de pizzaiolo, e a chefe Mara Salles se cruzassem e se unissem numa só direção: a busca pelo bom gosto e pelo sabor original da comida regionalista brasileira. Uma das mais renomadas cozinheiras da gastronomia nacional, Mara tem em Zé um fiel escudeiro e um consultor de primeira linha. Ela comanda a cozinha, enquanto ele vai, de mesa em mesa, apresentando as pimentas da casa. Entre pitacos, provas e respostas, o pimenteiro vira garçom e o garçom, chefe pimenteiro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Além de serem parte integrante do restaurante – e até motivo para atrair a clientela -, Zé Lima e suas pimentas também protagonizam um espetáculo à parte. Segundo a estimativa própria do criador, mil potinhos de pimenta – entre conservas aromatizadas e molhos – são vendidos aos clientes por mês. “Aqui a gente não fica um dia sem fazer pimenta. Chega carregamento toda semana, 3, 4 quilos. E sempre que sai um pote para o cliente, já entra outro no mostruário”, declara Zé, deixando transparecer uma sensação de orgulho entre os dentes tortos que formam o sorriso amarelado.

 

 

Toda conquista, contudo, precede grande esforço. A tarefa de fabricar as conservas exige, além de paciência, um sistema respiratório em pleno funcionamento e um canal lacrimal adestrado. O vapor da pimenta, uma das formas de se medir a picância, é devastador às narinas e aos olhos mais frágeis. “Tem gente aqui no restaurante que não aguenta nem ficar perto, porque o cheiro já trava toda a garganta. Empesteia o ambiente que nem comida estragada. Mas não tem nada de estragado não... Os processos de fervura e conserva, inclusive, servem para evitar a fermentação da pimenta. Quando saio daqui, preciso mesmo é tomar um banho gelado para aliviar a queimação da pele”, confessa o pimenteiro, que procura reservar as tardes de domingo para aproveitar a família em meio aos seis dias de trabalho semanais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na essência, José Lima não faz nada de novo. A pimenta sempre foi uma preferência em seu paladar, e o coletivismo que compõe uma cozinha não foi obstáculo algum. Antes de chegar a São Paulo, com 23 anos, Zé foi montador da usina hidrelétrica do Alto Tucuruí, no Tocantins – a maior fornecedora de energia das regiões Norte e Nordeste até o projeto de Belo Monte. Também acordou trabalho na construção de Itaipu, em Foz do Iguaçu (PR), mas levou furo do contratante e resolveu tentar a sorte na capital paulista. Depois de seis dias percorrendo as estradas que ligam o Brasil de Norte a Sul de ônibus, o pernambucano chegou em território estrangeiro e, como um forasteiro aventureiro e obstinado, conseguiu trabalho em menos de 24 horas.

 

 

Vinte quatro é o total de horas livres que Zé Lima tem na semana. Um dia de folga. E neste dia, que deixa a doma no armário e não aparece em seu terraço no Tordesilhas, seu Zé prefere ser apenas pai de Carol, Maicon e Ana; marido da baiana Lidiane. Torcedor do Palmeiras por opção e do Sport pelo coração. Morador da Avenida Casa Verde, vizinho do Corpo dos Bombeiros. Cidadão do mundo.

 

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